(vale a pena ler)
A cor azul da tigela queimava. Mais uma vez esqueci-me do leite no microondas, o branco sujo do leite de soja borbulhava no azul da tigela. Ouvi a voz da minha mãe ribombar dentro da minha cabeça:
- Andreia que cabeça na lua, nem do leite te lembras que puseste a aquecer.
Retorci o nariz ao sentir o odor quente do leite enquanto me martirizava novamente por me ter esquecido do leite num estado de aquecimento eterno. Gostaria que houvesse leite sem cheiro para pessoas como eu; o meu paladar rejubila-se com o sabor branco e castanho do leite com café ou com chocolate, mas a minha memória olfactiva ataca-me na presença de leite puro. Chego à conclusão que existem pessoas a desejar coisas bem piores, alguns desejam uma vida sem cores, um amor sem memória para tornar tudo mais fácil; eu apenas desejo um leite sem cheiro.
Encontro-me neste estado de reflexão em que facilmente mergulho, quando ouço o telemóvel a tocar desesperadamente no quarto, berrando por mim, gritando por ajuda. Caminhei lentamente, amaldiçoando quem estivesse a interromper o meu lanche sagrado antes das duas horas de estudo habituais; com a mão esquerda apertava o dedo que tinha queimado no azul da tigela e no meu esquecimento constante do leite.
Tive raiva de mim mesma quando li a mensagem, se ao menos soubesse que era grave… tinha voado pelo corredor fora evitando os tapetes escorregadios e os jarrões antigos com a destreza de quem conhece cada palmo da casa de olhos fechados desde de que nasceu, teria subido as escadas de dois em dois degraus sem ligar ao seu ranger velho de madeira, não teria gasto tempo com o meu dedo queimado, e nunca teria amaldiçoado quem me estava a interromper o quotidiano.
“Fui assaltado e atacaram-me na perna com algo cortante que está a deitar sangue. Vou tratar agora da ferida. Não te preocupes, estou bem”.
O sangue que lhe escorria pela perna, no mesmo momento escorria em mim pela alma, como qual liquido caprichoso que teimava em escoar da cabeça para os pés. O coração parou de bater por um momento que pareceu uma eternidade, perdi o controlo sobre a minha própria mão que largou, no que pareceu uma queda parada do rosa do telemóvel em direcção ao verde da carpete.
(estou a perder o controlo não estou?)
Levantei os olhos para o espelho em frente. Vi-me em estátua de rua; pele de um branco pálido, bochechas mortas de corado, lábios roxos, olhos presos e gelados e de coração em coma.
Os movimentos e os sons pareciam acontecer a uma velocidade anormal, ia jurar que as leis do tempo tinham tirado férias e que tudo se passava em câmara lenta. Iria jurar que me via de fora de mim, agarrada á parede para as pernas não vacilarem.
O que devem ter sido segundos pareceram demorados minutos; finalmente tomei consciência que estava a suster a respiração e a tontura a invadir-me o equilíbrio como um parasita. Controlei-me.
(respira Andreia, ar para dentro, para fora, para dentro…)
Depois da racionalidade ser recuperada e um pouco de cor à cara, a cama pareceu-me uma boa alternativa ao roçar das unhas vermelhas na parede amarela com a força com que me agarrava; consegui sentar-me e agarrar o telemóvel.
Quando hoje penso nesses dois minutos, acho que fui demasiado lenta, que devia ter ido a correr, que devia ter ligado logo, que devia ter ido a correr para o centro de saúde, que devia ter feito tudo e não fiz nada.
(foi pânico)
E se a ferida for muito profunda? E se ele não está bem e mentiu para não me preocupar? E se infectar? E se tiver apanhado alguma doença grave? E se estiver agora a caminho do hospital?
(fui atacado e tenho a perna a sangrar é bastante vago e preocupante para uma namorada dedicada como eu)
Tentei controlar-me de novo, procurei respiração e oxigénio com origem no abdómen e não no diafragma como tinha aprendido no yoga e focalizei a minha atenção toda na tecla 1; premi-a para a marcação rápida do número dele.
- Pii…Pii…Pii…
Os “pis” aumentavam e os “tum…tum” do coração também.
(atende por favor, atende, diz-me que estás bem).
- Amor? ‘Tás bem?
- Linda? Eu estou bem, não te preocupes.
Deixei mais uma vez o ar que tinha retido nos pulmões escapar de uma só lufada pela boca, como ladrões de sossego a fugir da prisão; os “tum tum” voltaram ao normal.
(ele está bem Andreia, vês? Não há motivos para preocupações…não há, pois não?)
As horas seguintes foram dilacerantes, enquanto ele corria da esquadra para o centro de saúde e controlava o seu próprio descontrolo; eu lutava contra a minha capacidade de abstracção.
(Não penses mais nisso Andreia, concentra-te no estudo…ele está bem!) tentava convencer-me.
As permutações, os arranjos, os gâmetas, a meiose; formulas matemáticas complexas e conjugações aleatórias de biologia que mudaram mundos, pareceram pequenos ao lado da importância do seu bem-estar. O coração tem destas coisas.
Tornei-me São Tomé em que apenas importa “ver para querer”. Por longos telefonemas, ele repetia-me interminavelmente com a convicção de quem é o salvador e não a vitima que tudo estava bem; pareciam papéis invertidos no teatro.
(devia ter tido forças para o apoiar e não ele para me sossegar)
(não passou de um susto, pois não?)
Nessa noite, a inquietação e a dor no dedo dorido da queimadura, tiraram-me o sono por completo.
Na manha seguinte fiz tudo com a rapidez que devia ter tido no dia anterior em vez de paralisar, vesti uma perna das calças enquanto lavava os dentes e arrumava os livros. Comi pouco e enquanto já caminhava para a escola, ouvi raspanete da mãe sobre a importância do pequeno-almoço e boas noites de sono, mas saiu mais depressa por ouvido do que tinha entrado pelo lado contrário. Apenas tinha a alma ligada para uma coisa. Esperei ansiosamente no portão, sabia que ele devia estar a chegar.
(Finalmente chegou)
Mesmo antes de virar a cabeça na direcção do seu riso, já sabia que estava a chegar; pela voz, pelo discurso leviano e bastante descontraído que fazia do assalto aos colegas, pelo perfume que raramente usa e pelo bom dia que soou mesmo por detrás do meu ombro.
(ele está bem…ele está bem…sorri)
Os músculos da cara obedeceram, sorri com a preocupação a sair-me pelos poros e o alívio a devolver-me a cor aos lábios. Apertou-me com força o que me expulsou as palavras que estavam por debaixo da língua:
- Para a próxima que me pregares um susto tão grande, bato-te.
Ele sorriu, eu sorri. Na noite seguinte dormi perfeitamente, com um sorriso no coração e um penso no dedo queimado.
p.s. os estudos dizem que 60% das vitimas de assaltos e ataques na rua não apresentam ocorrência do crima, o meu namorado foi nessa mesma noite à esquadra mais próxima e eu admiro-o por isso.